a ultima noticia
1. Vou cantar em versos agora, a respeito de um aluvião a história é bem ligeira e agradeço a atenção.É de um certo Zé Cadinho que não assuntava confusão, no entanto o destino trouxe uma triste sina, que já, já, conhecerão. Se me dão licença passarei a descrever o causo ocorrido bem lá no meu distante sertão, onde o vento faz a curva e a lua brilha na imensidão, clareando pensamentos, trazendo muita recordação. Vamos sem delongas passar ao diapasão.
2. Seu nome de batismo, não é este citado acima, mas Antonio Calado Mendonça,descendente de gente nobre diziam, originária do ramo dos Brabantes, senhores do engenho, gente influente no reino, órfão ainda pequenino, educado pelo pai, Dr. Eugenio Mendonça, homem letrado, muito estudado, mas sem honrarias, de trato afável, de muita camaradagem, homem sensato, dizem que viveu no áureo tempo do café, exerceu a função de Juiz de paz nas sesmarias, de caráter serio, dispensava capataz, aliás acatado em suas decisões,árbitro aclamado nas demandas de terra um autentico interiorano sem restrições.
3. Casado com Dona Idalina Cândida Mendonça, alma temente a Deus,de fala macia, porte elegante faleceu muito jovem ao completar trinta doces primaveras. Apesar de possuir uma pequena nesga de terra lá para as bandas do riacho novo horizonte, Zé Cadinho trajava nos dias santos de guarda, terno de casimira chapéu panamá no alinho, botas altanadas no brilho. Quem o via montado no seu alazão dizia ser um visconde ou autoridade importante.Sua fisionomia serena guardava segredos, decepções, desilusões a par de uma insaciável vontade de viver. Mas, a noticia derradeira estava a caminho, a passos largos,muito próxima...
4. Era conhecido em toda a zona da mata, no ribeirão do córrego fundo, nas fazendas de café, na cidade até. E não era para menos, no ofício um talento, ferreiro desde moço, amansava os potros e os calçava que era um colosso. De coração generoso, no conselho primoroso, ia à missa aos domingos no arraial de Santa Fé e arriscava até a cantar no coro no dia do lava-pés.
5. Na juventude fez seminário, foi acólito, congregado mariano,da ordem 3ª do Carmo, estudou no célebre Caraça, formou-se em medicina na cidade de Medina com louvor e distinção. Por três anos seguidos exerceu a profissão. Médico abalizado cuidava dos pacientes com muita abnegação. Não se sabe ao certo o motivo da deserção, apenas suposições aventadas, se o tempo facultar a charada vamos desvendar.
6. Mais tarde largou tudo, tornou-se andarilho, conheceu o mundo, foi mascate, abastado comerciante. Casou-se com a bela Catarina em São Pedro da Aldeia, interior do Rio de Janeiro, enviuvou na seqüência. Enfim, cansado das glórias do mundo, sem ambição nem filhos, retornou ao seu querido torrão natal para sossegar um bocado, como dizia, e passou a cuidar da sua antiga função.
7. Passemos ao fato que aconteceu num dia de S. João,um quarto de hora depois que o campanário tocava as doze abençoadas ave-marias. A data teria tudo para ser alegre e descontraída, dali a quatro dias era festa de S.Pedro e Zé Cadinho iria completar 48 anos, mas infelizmente não foi não. Na véspera conforme costume antigo arriou o cavalo no jeito na matula, rapadura, farinha e torresmo. E partiu bem cedinho para
Boqueirão das Almas, ia encontrar o amigo Luís de Tânia para sua última façanha.
8. A noite já ia alta e alvissareira, no povoado as bandeirolas enfileiradas recebiam os visitantes e no conjunto tudo estava radiante. Não faltavam pau de sebo, a grande fogueira ornamentada, quentão, prendas, alaridos, o quadro do santo e a tradicional queima de fogos de artifício. Todos os anos era uma festança, que os mais antigos guardam na lembrança.
9. O devoto Zé Cadinho,seu compadre Luís de Tânia dançaram a quadrilha naquela noite estranha,estrelada e cheia de brilho. A última façanha para os dois quase-irmãos, sina medonha, acredito ser destino o causo sucedido. Outros disseram ser alopração do desentendido, resultando desdobramentos trágicos
ou premonição ao acaso?
10. Zé Cadinho bom no passo, encantara Maria Solange, prometida a Itelvino Frejante. Luís de Tânia, moço falante flertou com Inês Vieira, noiva de Tião Figueira. Moças casadoiras, nem tanto... Comentavam no arraial ser casamento arranjado, capricho dos pais, outros opinavam ser interesses de herança. Vá entender! Só uma coisa posso dizer: No ar estava a intrigada trama armada...não à toa calculada! A cobiça desmedida, o ciúme ferido, a vingança arraigada atrapalha a mente de gente sensata.
11. A noite passou ligeira, quando deixaram o Arraial o galo cantava na soleira, adiantaram os cavalos, o sereno caia calmo e pararam na Venda das Pedras para o acostumado escaldo. Num canto acocorados, conversaram animados, a última prosa deste mundo obstinado: - É Nonato, cumprimos nosso ritual, passamos a fogueira do santo, foi uma alegria e tanto. Agora é meu compadre, né. - Isso mesmo compadre Zé e foi à meia-noite em ponto. Significa que estamos ligados na vida e na morte... - Concordo plenamente. E ano que vem a gente volta de novo, compadre Nonato para a renovação deste compromisso sagrado.- Bom, já é hora de tomarmos a estrada, que acha?! - Sem dúvida. Seu Juca Bragança, fecha a conta, meu camarada. - Noite pra quem fica! - Noite pra quem vai! ( Respondeu pigarreando uma figura taciturna ao canto do balcão).
12. Na viola afinada Fortunato dos Anjos, entre um trago e outro da maravilhosa, levava sua cantiga melodiosa que falava da sorte infeliz de um tal Chico de Assis, por causa de encrencas amorosas arrumadas pereceu numa emboscada em Terra Nova dos Emboabas, assim os antigos diziam. Era a cantoria do emissário do diabo, que ouviram e nem sequer suspeitaram do perigo.
13. O dia já clareava quando selaram os cavalos e retomaram a marcha forçada. Atravessaram a vertente da mata, o sereno brilhava nas folhas dos cafezais e na curva da estrada as preás saltitavam alvoroçadas. Era a última caminhada... Cavalgaram o dia todo, atravessaram povoados e descampados. Fizeram quatro paradas . Já era noitinha quando avistaram o alto da Fazenda Prosperidade. A noite caia mansa, o som de um sino na Igrejinha de Santa Luzia, na aldeia de Várzea Grande anunciava o Ângelus. - Arre! Compadre Zé que escuridão esquisita. Sinto um estranho calafrio. Acho melhor pegar outro caminho. Pêra aí qual nada é impressão. Eia! Chicote, vamos! Que relincho é esse?! Foram suas últimas palavras neste mundo malvado. A vindita estava perto... Continuaram em silencio por um quarto de hora. A sorte contrária se aproximava...
14. Na encruzilhada da porteira, os cavalos se assustaram, bufavam inquietos, firmes nas rédeas, os dois amigos vislumbraram o iminente perigo e apenas se entreolharam... Ouviu-se dois estampidos sonoros de carabina certeira que ecoaram anunciando a noticia derradeira...
15. Assim terminam as lembranças que trago na memória Até hoje duas cruzes estão fincadas na encruzilhada da porteira, indicando a última travessia de Zé Cadinho e Luís de Tânia. Que Deus os tenha em sua imensa misericórdia!
16. A pedido dos leitores prosseguirei na empreitada descrevendo os fatos posteriores a tragédia anunciada. Antonio Calado Mendonça e Luís de Tânia Nonato foram sepultados com comoção, receberam dos amigos e familiares o último adeus, missa e devoção.No caixão de Zé Cadinho depositaram seu inseparável bentinho. Nonato foi sepultado com sua espora de prata. Poucas semanas depois o cavalo chicote morreu de febre palude. Mistério! Zé Cadinho em vida lavrara testamento. Deixara uma considerável fortuna para as obras de misericórdia... Tudo agora fazia sentido e vamos aos fatos que passam a esclarecer a trama sem perdão.
17. Os jornais noticiaram o acontecido. O caso teve repercussão. Dr.Nepomuceno Junqueira, delegado de renome foi designado e de pronto diligenciou buscas minuciosas. Prendeu um pistoleiro perigoso na distante cidade de Alterosa. Tratava-se de Fortunato dos Anjos , vulgo amargoso, violeiro dissimulado e bom de prosa. Interrogado, revelou detalhes da tramóia e os preâmbulos que culminaram na terrível emboscada naquela noite que teria tudo para ser rememorada com júbilo...
18. Acertara o “serviço” na Venda Porto das Pedras um pouco depois da dança da quadrilha por 30 contos de réis. Ficara bebendo até a passagem dos dois amigos. Explicou ao Juiz que queria tomar raiva deles para melhor executar o serviço. Pasmem! Logo em seguida partiu à galope para o local escolhido.Trocou de cavalo três vezes para ter uma boa folga na frente de Zé Cadinho e Luís de Tânia, tudo combinado. O interrogatório estendeu-se pela noite adentro. Fortunato revelou sangue frio e uma ponta de
ironia ao relatar os últimos momentos dos dois amigos.
19. –“ Os desventurados não esboçaram nenhuma reação, nem podiam, o fator surpresa foi decisivo... Mirei bem,nisso eu bom e plaft, plaft. Mandei os infelizes para outro mundo.Tem uma coisa que preciso falar. Naquele último instante eles perceberam a situação e enfrentaram a morte como cabras machos e de cabeça erguida”. O Juiz Dr. Conrado Severo indagou se eles esboçaram alguma reação? - Não sei não, Sr. doutor. Um deles, acho que foi Zé Cadinho, exclamou: “ Minha Santinha! Nossa hora chegou, compadre! Valha-nos Deus”. Após os disparos eu me aproximei bem dos dois Eu me alembro , porque a coruja piou três vezes no oco da figueira. Eles tinham um brilho incomum nos olhos, e olha, seu doutor que nunca vi uma coisa assim antes. Essas foram as palavras de um dos pistoleiros mais temido em toda a zona da mata.
20. Os mandantes do crime foram indiciados, presos e julgados. Não valeu aos Vieiras e Figueiras apelarem , ao magistrado.Crime é crime e mereceu a pena máxima decretada. Os agravantes impressionantes foram revelados: se apossariam da fortuna de Cadinho, títulos ao portador e ouro em barras ao todo somavam a quantia 100.000,00 réis. Não contavam com a precaução do testamentário que muito antes em cartório, ao tabelião notário a notificação em ata documentara. Se vingariam do passado alegando que o doutorzinho teve envolvimento numa operação mal sucedida num irmão de Itelvino. Fato verídico mas que não justifica a inominável vingança arquitetada. (A bem da verdade é bom esclarecer que a junta médica presidida por Dr. Antonio Calado no Hospital Bom Pastor em Nova Bonfim era pioneira em cirurgias de vesícula. Dos 30 casos que se tem conhecimento apenas três deles tiveram desfecho fatal. Entre esses se encontrava Frejinho, irmão caçula de Itelvino).Voltando ao assunto interrompido, também relataram que foram preteridos na dança da quadrilha pelas respectivas moças desencadeando o estopim e o pretexto como se fosse questão de honra. De nada adiantou a argumentação da defesa ressaltando ser crime passional, os jurados unânimes corroboraram aos réus a justa sentença. Não demorou muito e o sertão conheceu a paz desejada.O Intendente estadual Dr. Porfírio Andrade e Silva tomou providencias, a guarda armada foi constituída e agiu com força, critério e justiça. Em pouco tempo desmantelou a sanha desta gente malvada. Um por um outros justiceiros foram caçados, presos e julgados. Enfim o mandonismo estava com seus dias contados.
21. Os anos se passaram. O povoado emancipou-se e tornou-se a simpática cidade de Mendonça, com carros, comercio, Igreja,câmara municipal e faculdade. Quem visita a cidade logo lê a citação esculpida na enorme pedra sabão na praça Dois amigos no largo da matriz: Aqui nasceu Antonio Calado Mendonça,Insigne Ferreiro. Herói, orgulho da Terra Sejam bem-vindos, amigos.
22. Um desses forasteiros, numa manhã de sol era Fortunato dos Anjos, cumprira sua pena e agora regenerado ia visitar o túmulo de Zé Cadinho e Nonato. Procurava redenção e certamente deles receberia o perdão. No cemitério, apenas balbuciou um lamento amargo: - Matei dois inocentes... Assim como chegou, silencioso partiu e ninguém nunca mais ouviu falar dele. Parece que mudou para Santo Anastácio e tornou-se retireiro e tocador de boi para algum fazendeiro.O remorso, ferida em chagas o acompanhou até a sua morte em 1979. Contam também que de quando em vez a coruja piava em algum toco de pau, ele se arrepiava, plaft,plaft...
23. Melhor sorte não encontraram Itelvino e Tião . Na cheia de fevereiro do ano de 1968, fugiram da prisão e por ironia do destino encontraram a morte na travessia do caudaloso riacho Novo Horizonte.
24. Maria Solange da Costa entrou para o convento das Carmelitas Descalças em Santa Fé, professou os votos perpétuos com o nome de Sóror Maria da Anunciação.Fundou a Casa da Pequena Misericórdia para órfãos. Faleceu em 1972 em odor de santidade.
25. Inês Vieira de Lima, mudou-se para o Rio de Janeiro,estudou música, formou-se em Letras. Nunca se casou. Atualmente é escritora de renome em Buenos Aires. Recentemente esteve em Santa Fé para o lançamento do seu 26º romance intitulado: Memórias de Sangue O livro, bem escrito descreve em detalhes surpreendentes os três motivos que desencadearam a emboscada e selaram para sempre o destino de dois valorosos amigos.
26. O dito progresso chegou célere em Mendonça. A Maria Fumaça, antes orgulho da região, foi substituída pela extensa Rio-Bahia, com motores a diesel, máquinas de terraplenagem, motores barulhentos em movimento, prenuncio de uma era turbulenta,onde poucos saberiam medir toda a sua extensão fraudulenta. As lavouras de café deram lugar ao descampado para criação do gado leiteiro e de corte. E o sertão pouco a pouco se deu conta da grande evasão. E os fatos trágicos que foram narrados caiaram no esquecimento geral. Ou melhor dizendo não para os vaga-lumes solidários que por volta da lua cheia nas noites de cerração baixa alumiam sem cessar a encruzilhada da porteira homenageando aqueles dos amigos inseparáveis que pereceram sem razão. O fenômeno intriga os céticos, mas acontece, posso afirmar,todos os anos na noite de São João.
27. Ao terminar a poesia a última notícia, o peito bate forte, as tristezas e lágrimas não há quem as console, a não ser o sentido norte que conduziu este poeta mínimo que vive com um pé na realidade cosmopolita e outro fincado na era antiga.Quem sabe possamos prosseguir em outra ocasião, relatando outros causos de intrigas, ódio, braveza e passos que povoam a imaginação do povo interiorano acerca de nosso distante, amado e iluminado sertão, palco de proezas, histórias e muita singeleza que marcaram para sempre a vida deste quase escritor que ousa sonhar de olhos abertos, despertos, e que depois de muito chão canta seu aluvião na humildade e confessa na verdade ser fugaz o som das letras. Aproveita a ocasião para deixar registrado nestas páginas o quanto o olhar carinhoso do amigo(a) leitor(a) enobrece seu coração e personifica a grande locomotiva que lhe trouxe a inspiração bendita. Graças a ele que encontra motivo para externar sentidos sentimentos. Daí a razão para oferecer-lhes esta despretensiosa criação e depositá-la comovido em suas mãos.
Helder Chaia Alvim
( Coleção Lamparina, 1ª Parte –São Paulo, 2007 )