quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Códice de Agostinho

1. Volto para casa, abasteço o filtro de barro, referência da estância pirineus adorada, e a água faz um barulhinho ininterrupto de goteira, entalho umas palavras, folheio despreocupadamente 'as Confissões' de Santo Agostinho e na profusão maravilhosa de seu pensamento viajo em sua abstração de capítulo em capítulo até o livro décimo terceiro e faço de uns tópicos minha invocação.

2. '... Eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e do que me fizeste. Não tinhas necessidade de mim, eu não sou um bem que te possa ser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação te cansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meu culto seja para ti o que é a cultura para a terra, que sem ela ficaria estéril. Eu devo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo o meu ser, capaz de felicidade.'

3. E o admirável mestre de Hipona continua e continua incansável na busca sublime... O filtro silencia seu cascatear em gotas e sua lembrança me remete a uma era humilde e bondosa do sertão que se perdeu para sempre na curva empoeirada de suas ínvias estradas, e com ele levou na garupa um jeito de ser mais humano e acolhedor, mais de fé e contemplação, e na contramão apareceu o caminhão barulhento movido à diesel e  a paisagem de alegre tornou-se triste.

4. '... Mas seu bem (do espírito) reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a luz que adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante a um abismo de trevas. E também nós, que por nossa alma somos criaturas espirituais, nós nos afastamos de ti, nossa luz, nós fomos outrora trevas nesta vida e ainda padecemos por entre os restos de nossas trevas até que nos tornamos tua justiça em teu Filho Único, como as montanhas de Deus, pois somos objetos  de teus juízos, que são profundos como abismos.'

5. Vejo refletida nas explicações do santo de Hipona a situação atual de indecisão e precária em vários sentidos, em que a sociedade de seres pensantes mergulhou em poços artesianos quase sem fim, tudo devido ao afastamento paulatino de Deus e do seu saltério de dez cordas promulgado pelo legislador Moisés no Sinai.

6. ' ... Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as escrituras falam de teu espírito?'

7. '... Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Era pois, necessário, mencionar primeiro o elemento sobre o qual ele pairava, já que convinha falar dele apenas dizendo que pairava, Mas por que não convinha apresentá-lo senão dizendo que pairava?' 

8. ' Agora quem o puder com a inteligência, siga a teu apostolo, quando ele diz que tua caridade se difundiu em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado, quando nos instrui sobre as coisas espirituais e nos indica o caminho excelso da caridade, e dobra o joelho diante de ti por nossa causa, para que conheçamos a ciência altíssima da caridade de Cristo. E é porque era super eminente desde o princípio que pairava sobre as águas.'

9.' A quem e como falarei de peso da concupiscência que nos arrasta para um abismo profundo, e da caridade que nos eleva, com a ajuda de teu Espírito, que pairava sobre as águas? A quem falar, como falar? Nós submergimos e emergimos, mas não em abismos materiais. A metáfora é  a um tempo correta e muito inexata. São nossas paixões, nossos amores, a impureza de nosso espírito que nos arrasta para baixo sob o peso das preocupações. E é tua santidade que nos eleva pelo amor  de tua paz, para que levantemos nossos corações para junto de ti, onde teu Espírito paira sobre as águas, e alcancemos o sublime repouso, quando nossa alma tiver atravessado essas águas que são sem substância.'

10. Amigo on line, a densidade do pensamento de Santo Agostinho assombra à primeira vista, salta aos olhos a insegurança da caminhada terrena. Sua inquietude nos leva a passear por horizontes novos do espírito. Ele viveu, sentiu e plasmou o mundo ideal na sua confissão, fugaz!

11.Vamos continuar, amigo, se lhe aprouver, enveredando em seus textos sequiosos de mudança interior, pois a existência humana por sua ótica torna-se viável apesar de sublime não acachapa, se inquieta, não incomoda.

12. E é na caridade de um destino maior que mira sua verve fantástica, se sacode é para cair a roupagem do homem velho, se espera tem como base a vida futura, se admoesta é para nos empurrar-nos  para o alto. Sim ele traçou uma ponte segura entre o palpável e o imponderável.

13. Sempre atual, sempre em voga, a filosofia do santo de Hipona acompanha o tempo, digladia com ele a favor da causa espiritual, eterniza anseios e prova que  duas cidades antagonizam-se constantemente entre si numa queda de braço com desdobramentos eternos. Ele fala de cadeira, e ao provar o mundo teve uma indigestão, ao tocar em Deus uma inspiração. Agostinho passado no presente, presente no eterno pensamento do mundo incomensurável das idéias. Veio para ficar, ficou para influenciar as gerações da era do Pater.

Helder Tadeu Chaia Alvim

Um comentário:

Anônimo disse...

Vai e volta e contempla séculos e gerações na mudança de roupagem, na suavidade das canções da eterna beleza!!!

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